UMBIGO DO SONHO: A DANÇA QUE DESEMBOLA A VIDA

Texto Carlos Franco
Foto: Francisco Jr.
“Sonhar sempre é preciso e é o que mantém os irmãos vivos.”
A frase, nascida das sensacionais canções do Racionais MC’s ecoou no 31º Festival de Dança do Triângulo nos passos geniais do bailarino Fábio Costa e de sua pungente apresentação de “Umbigo do sonho” no palco do Teatro Municipal de Uberlândia. A obra, uma parceria do artista residente do Palácio das Artes de Belo Horizonte com o psicanalista Musso Greco, faz o casamento entre dança e psicanálise ritmada por uma trilha sonora potente criada pelos participantes do projeto “Desembola na ideia” que, desde 2008, vem atuando com menores infratores marginalizados da capital mineira.
Não é só palavra, é corda que puxa o corpo para cima, para frente, para dentro. Fábio Costa, bailarino, agarrou esse fio e teceu o Umbigo do Sonho, que é cicatriz de um corte antigo, lembrança de que já fomos ligados a outro corpo, a outra vida. Mas também é centro, eixo, ponto de onde brota o movimento. E o sonho? O sonho é o que sobra quando o mundo diz não. O que resta quando as portas se fecham, quando a rua engole os meninos e a Justiça só chega para punir.
Musso Greco batizou seu projeto com uma gíria da quebrada: Desembola na Ideia. Na linguagem dos jovens de Belo Horizonte, “desembolar” é desenrolar, inventar saída onde não há. Desde 2008, esse projeto abre brechas em muros altos. Conversas que viram pontes, ateliês de arte que transformam raiva em tinta, psicanalista que escuta sem julgar e passos que formam compassos de sonhos, encantamento.
Os meninos chegam ao projeto de Musso Greco com histórias marcadas a ferro: tráfico, drogas, medidas socioeducativas. A maioria, negros e pobres, sabe que a sociedade já os condenou antes mesmo do primeiro delito. Mas no Desembola, eles encontram algo raro: um lugar onde suas vozes não são caladas.
Fábio Costa mergulhou nesse universo. Não como observador, mas como irmão. Seu corpo, treinado para voar no palco, aprendeu a escutar os corpos que a cidade trata como lixo. E daí nasceu Umbigo do Sonho: uma dança que é grito e abraço, queda e levantamento.
No espetáculo, os movimentos falam de dor, mas também de resistência. Um pé no chão, outro no ar. Braços que se estendem como quem pede ajuda, depois se fecham como quem se protege. A música é batida de tambor, é silêncio. O palco vira viela, vira cela, vira céu.
Fábio não dança sozinho. Leva consigo os meninos do Desembola, mesmo que muitos nunca tenham pisado num teatro. Eles estão ali, nos gestos que contam suas histórias. Porque sonhar não é luxo, é necessidade. É o que impede que a vida vire só sobrevivência.
Numa sociedade como a uberlandense de néscia vereadora que adora engavetar gente pobre e preta, insistir no sonho é rebeldia. O Umbigo do Sonho não é só arte, é ato político. Lembra que os “irmãos” da frase dos Racionais MC’s não são só de sangue, mas de luta.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu uma vez que “os navegantes antigos tinham uma filosofia gloriosa: não podiam ver a terra, mas carregavam-na dentro de si.” Os meninos do Desembola também. Não veem futuro, mas carregam um dentro do peito. Fábio Costa, com sua dança, ajuda a desembaralhar esse mapa.
No final do espetáculo, não há aplausos que bastem. Há silêncio. O silêncio de quem entendeu que sonhar, afinal, é o último território livre. E ninguém pode tirar. A própria trajetória de vida do bailarino que nasceu em Araraquara e hoje integra o núcleo de dança do Palácio das Artes é espelho deste espetáculo, da vida do menino que acompanhava a labuta da mãe na casa dos patrões, que se tornou servente de pedreiro, mas que soube transformar o carrinho de obra em objeto cênico dos sonhos, que flertou como os meninos do “Desembola na ideia” com a marginalidade e que, com a dança, encontrou sua salvação, seu desejo de encantar-se e sua disposição de nos encantar.
Os passos de Fábio Costa são pura magia e os sonhos criados pelos irmãos do projeto “Desembola na ideia” um verdadeiro desembolar de vida em contraposição à morte social a que muitos são relegados. Sua participação no 31º Festival de Dança do Triângulo por meio do projeto “Dança em trânsito” do Sesc patrocinado pela Fecomércio Minas Gerais mostra que, como cantava Gonzaguinha, o filho do Gonzagão que morou nos morros do Rio de Janeiro, é bonita, e é bonita. Viver.