MACABÉA ESTÁ DOENDO EM MIM

Carlos Franco
Deixei o Teatro Municipal de Uberlândia na noite deste sábado, 6 de agosto de 2022, grávido de futuro e esperança com Macabéa, a mítica personagem de Clarice Lispector, doendo em mim. É que é preciso sangrar a dor, doer por dentro com o que se vê por fora e, assim, doendo por dentro enxergar no lodo a flor e cultivar a esperança materializada na obra de Clarice de que “um dia essa raça anã, conquistará o direito ao grito”.
É a dor de ser e viver de Macabéa, ser o que se é que grita em mim. Esse personagem que nasceu do mergulho pungente de Clarice Lispector no lodo e da sua busca constante pelo seu lugar no mundo. A menina que chegou da Ucrânia ao Recife aos 2 anos de idade, em 1922, com a família se refugiando no Nordeste brasileiro das agruras da Primeira Guerra Mundial, deixou de legado essa dor que todos experimentamos na sua busca pelo avesso do avesso do avesso. Aquilo que somos nós e o nosso lugar neste mundo, vasto mundo no qual é com o interior que enxergamos o exterior e o tecemos enquanto memórias e legados.
A Hora da Estrela não é apenas o último livro de Clarice Lispector – Um sopro de vida reúne textos pós-mortem de um livro inacabado, mas acabado por inteiro -, mas é também o primeiro em que mergulha num personagem nitidamente brasileiro, nordestino, com fome de viver alimentada por pão com mortadela e Coca-Cola ao som do tic tac da Rádio Relógio Federal que não toca mais. As ondas sonoras desta rádio fluminense caíram nas garras dos evangélicos sem Cristo que renegam o Evangelho do Amor ao Próximo e nunca enxergarão Macabéa a não ser que esta seja capaz, um dia, de pagar, em vida, o dízimo aos podres pastores da morte.
Na sua vida que é nada, Macabéa deixa um legado de que é tudo. O musical “A Hora da Estrela – O Canto de Macabea”, que encerra neste domingo, 8 de agosto de 2022, sua temporada no Teatro Municipal de Uberlândia, é brilhante em sua adaptação. É divinamente sonoro nas canções do também nordestino Chico César que conquistou o seu direito ao grito e ganhou nas interpretações de Claudia Ventura, Laila Garin e Leonardo Miggiorin vozes potentes para narrar uma história profunda, aparentemente simples, espelho do mundo desigual onde todos buscamos nosso lugar ao sol. A carta lida por Madame Carlota, a cartomante, nos devolve a esperança, o vermelho esperança que jorra nas nossas veias sanguíneas ainda que com Macabéa doendo em mim.
Se André Paes Leme, adaptador e diretor, traz de Clarice Lispector para sua adaptação de ‘A Hora da Estrela” o texto de uma de suas mais famosas crônicas em que alerta para os exageros das forças policiais a partir da morte, no centro do Rio de Janeiro, de José Miranda Rosa, o “mineirinho”, em 1962, esse mesmo texto se transforma num tapa na cara de todos que, à luz do dia, como naquele primeiro de maio de 1962, aceitamos as barbáries e nos distanciamos da civilidade e urbanidade. Por isso, assim, escreveu Clarice:
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Macabéa me deixou desassossegado, mas, ao mesmo tempo, grávido de futuro. Certo de que o vermelho esperança, como os morangos que Clarice Lispector sempre mantinha na geladeira, há de vir – e que venha logo, livrando nos de todo o mal que nos ronda, amém, pois só, assim, abriremos caminho para que esta raça anã que somos nos, que é a Macabéa que vive em nós, conquiste o seu lugar ao grito.
Que o amor, a dor do outro, o ser o outro vença as armas, pois em tempos de morte, de necropolítica, viver e amar o próximo é um ato de resistência.
Macabéa vive.