O ATOR QUE NÃO TRAIU O PÚBLICO

O ATOR QUE NÃO TRAIU O PÚBLICO

Carlos Franco

 

Marco Nanini dispensa apresentações. É um dos mais talentosos e versáteis atores da sua geração. Nas sessões do espetáculo “Traidor” no Teatro Municipal de Uberlândia neste fim de semana, dentro da surpreendente programação do projeto Uberlândia na Rota das Culturas e em respeito ao público em consequência de uma cirurgia no menisco do joelho que ainda o impede de ficar de pé, passou os 50 minutos do espetáculo numa cadeira de rodas. Traidor de Gerald Thomas é uma viagem, carregada de referências, ao papel do ator e de suas vivências, aos escombros daquilo que há de humano em nós, das nossas divagações e nossos conhecimentos esparsos, só que, neste caso, como jorros de um fluxo contínuo.

O espetáculo que conta com uma iluminação e um cenário eficientes, do qual quatro atores são parte em linguagem gestual, é, em si, uma trajetória complexa às mais recônditas memórias de uma mente iluminada que discute o papel do ator e também suas vivências neste processo, duas faces da mesma moeda, o que somos e o que representamos para o outro.

Ao abrir a cena ao som de Bach e ao se sintonizar no universo do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (Gerald Thomas não nega suas origens) para falar de emoções, Nanini divaga em torno delas, que vão surgindo em jorros, por vezes difíceis para o público que não tem ou desconhece as referências de que tratam a dupla Nanini-Thomas. Para esse público, distante do fazer teatral e da mente prolixa de Thomas e de suas encenações ou as da carreira do ator em cena, há o consolo de pequenos jorros divertidos de comerciais de linguiça que resgatam a imagem de um dos maiores sucessos de Nanini ao lado de Ney Latorraca, a peça “Irma Vap”, que ficou anos em cartaz encantando multidões.

O brilhantismo do cenário e da iluminação são pontos altos do espetáculo, com o uso de gelo seco como elemento cenográfico que tem sido característica de Thomas, que neste espetáculo abandonou a tela de filó com o qual criava uma parede entre os atores e o público. Os efeitos de luz no encontro deste gelo seco encantam e tornam mais suave a tragicomédia ao público. Trágico porque esta é origem do teatro e cômico porque é aquilo que, nos bastidores impera, desde as pequenas vaidades às falas que devem ser ditas ainda que o ator com elas não se sinta representado. Nietzsche à primeira vista não é um filósofo de fácil compreensão, nem o seu nome, brinca o ator, é fácil de dizer, bem que poderia se chamar, sei lá, Aristóteles, quem sabe Juvenal, afirma em cena.

Bastidores do teatro e divagações imperam durante todos os minutos e segundos do espetáculo, assim como os fatos do cotidiano como a luta por carimbar um passaporte para entrar ou sair dos Estados Unidos e mesmo a crítica ácida aos aplicativos de celular que, na modernidade, nos afastam das referências tratadas no espetáculo porque não lemos mais, apenas lançamos perguntas à ferramentas como o Google e, assim, senhores de si, sem mesmo saber o que é falso e verdadeiro, damos a nossa participação e nossa contribuição no emaranhado interminável das redes sociais.

“Agora é diferente! Está pior do que nunca! O Instagram é pior do que as fogueiras da Inquisição! O Facebook é pior do que o Terceiro Reich”, diz o personagem de Nanini a certa altura, para mostrar o quanto hoje nos distanciamos de nós mesmos. O próprio discurso do ator em cena é expressão desta colcha de retalhos, só que referenciada pelo exercício do ator no palco e em outros espetáculos e das suas próprias vivências reais e imaginárias.

É um espetáculo, sem dúvida nenhuma, para iniciados. Nele estão contidos trechos de outra obra de Thomas da qual participou Nanini há quase duas décadas, “Um circo de rins e fígado”. Então, nessa colcha de retalhos, muitos se perdem, pois o fio narrativo é solto, cabe a cada um costurar ao seu modo, é como o fluxo que temos, nós mesmos, com nossas memórias, nossas emoções. Enfim, este ir e vir no passado que trazemos para o presente para projetar o futuro. É este o impacto que Thomas sempre busca: criar uma situação que leve à reflexão, uma reflexão multifacetada dos nossos próprios escombros, das nossas referências, daquilo que nós torna seres pensantes.

Em Traidor, Nanini, o personagem perdido numa ilha em meio a escombros, como o Próspero da shakespeariana “Tempestade”, abre os seus livros, não necessariamente na ordem narrativa em que surgem. Conta em cena com a parceria de um coro – sempre tão presente nas tragédias gregas – desempenhado pelo atores em cena que também são contrarregras (aqueles que mudam cenários e personagens de lugar, no caso a cadeira de rodas) e, sobretudo, elementos do denso cenário, onde um boneco, amarrado tal qual o Guliver em Liliput mostra as amarras de um ator ao texto que se desenrola em cena em busca talvez dos anões que o podem soltar, este território mágico que Thomas explora.

É sem dúvida um espetáculo de fôlego e para os que não têm conhecimento do fazer teatral, da carpintaria desse fazer e das referências ao pensamento ocidental, resta os comerciais e uma aula magna de como a iluminação e a música podem tornar um espetáculo bonito de se ver. Assim como a integridade do ator que não traiu o público e se apresentou numa cadeira de rodas, que passou ela mesma a ser elemento cenográfico.

editoraolympia

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