TOM ESTÁ NU NA FAZENDA

TOM ESTÁ NU NA FAZENDA

Violência e paixão são estados emocionais indissociáveis. Nos violentamos muitas vezes para sermos aceitos, amados. É disso que trata “Tom na Fazenda”, que estreou ontem, dia 6 de setembro de 2024, em Uberlândia, no Teatro Municipal, e que expõe as mazelas do machismo, do patriarcado e da homofobia.

 

Carlos Franco

O dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard, 66 anos, mostra em “Tom na fazenda” (do original “Tom à la farme”) que é possível reunir clichês em um texto denso e profundo esticando-os ao limite em que ganham impactante carga emocional. “Todo mundo tem um esqueleto no armário”, “toda mãe tem amor incondicional aos filhos, que, aos seus olhos, são perfeitos”, “violência gera violência”, “toda perua é burra” (não o animal doméstico consumido no brasileiro Natal e no americano dia de Ação de Graças, mas o estereótipo consagrado de mulheres fúteis e vazias, extremamente emotivas, por vezes perigosas, e preferencialmente usando algum tipo de estampa de oncinha), “a mentira tem pernas curtas” e “a sociedade ruralista, por mais moderna e tecnológica que seja, é hipócrita e atrasada em essência” (independe da região ou país em que está situada) são apenas alguns desses clichês que Bouchard lapida transformando-os em brilhante dramaturgia. Mostrando que por trás desses clichês que todos conhecemos existem pessoas, gente como a gente, muitas vezes, para não dizer na maioria delas, incapazes de lidar com as diferenças. É uma obra de fôlego que conquistou os palcos em 2011 e as telas de cinema em 2013, quando o filme “Tom à la ferme” dirigido e escrito por Xavier Dolan e Michel Marc Bouchard estreou no Festival de Veneza, na Itália, causando impacto.

É este texto que o ator brasileiro, pernambucano do Recife, Armando Babaioff traduziu para o português e, como Dolan no cinema, decidiu ele mesmo interpretar o próprio Tom sob a direção segura Rodrigo Portella e a cumplicidade dos atores Denise Del Vecchio, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary. Há sete anos em cartaz, o espetáculo brasileiro aplaudido em países europeus, encontrou no cenário minimalista criado por Aurora dos Campos, nos figurinos de Bruno Perlatto e na iluminação segura de Tomás Ribas o ponto ideal de inflexão para que os corpos ocupem o centro da ação. Afinal é um corpo ausente que se faz presente no texto que dá o tom da narrativa e do Tom na Fazenda.

A história de Tom é aparentemente simples. Ele é um publicitário da cidade grande que comparece ao velório e sepultamento do namorado, do seu homem, e percebe que a família que o recebe para o ritual de luto não sabe da sua existência. A mãe sente o seu perfume, como o do filho, o recebe e procura ser cordial, mas a distância dela do mundo do filho e, portanto dele mesmo, o incomoda, causa estranheza. O irmão que cuida da moderna fazenda de gado leiteiro é mais rude, o ameaça, pois sabe da preferência do que partiu, mas quer poupar a mãe da verdade, pois vivem numa cidade rural, machista e homofóbica e têm na igreja a referência da vida em sociedade.

Então, este irmão tipicamente grosseiro, sem ser estereotipado e numa atuação brilhante e natural de Gustavo Rodrigues, sugere a Tom, na verdade o obriga, a dizer para a mãe que o filho tinha uma namorada. Um modelo de mulher como deseja todo machista: loira, linda e de poucas falas, no caso porque seria estrangeira e desconhece o português, mas sobretudo porque mulher _ ou melhor, fêmea _ de macho rural não abre a boca, nem tem direito ao seu lugar de fala.

Uma farsa que ganha contornos mais cômicos quando Tom decide trazer para a fazenda do falecido namorado uma colega da agência de publicidade onde atua como designer gráfico e que é o estereótipo perfeito da perua burra para apresentá-la como a namorada do seu namorado.  Só não podem prever que a mãe, como todas as mães, sabe trafegar com carinho e cumplicidade na verdade que se esconde atrás da farsa. Paralelamente, Tom se envolve numa relação de violência e paixão com o irmão do seu falecido homem. Uma luta na lama e nos mais recônditos desejos em que ambos se transformam. Tom se torna mais rude e o irmão do namorado mais suave consigo mesmo, fazendo uso de perfume e até contemplando no espelho se tem ou não uma bunda bonita. Que os opostos se atraem todos sabemos e que há sempre o desejo recôndito de transformamos o outro em nosso espelho, também sabemos. Afinal, é a lei do desejo.

É também o desejo de viver, mesmo onde parece não haver vida, que assume a cena e as revelações. Um crime tão denso quanto o texto surge nas entrelinhas, no claro escuro de um cenário enxuto e enlameado. Tal revelação ajuda na costura dessas vidas onde a lei do desejo deve seguir padrões de normalidade. Seria normalidade seres abrocháveis e incomíveis? Não. Tais seres são o próprio reflexo da anormalidade, buscam se resguardar na ignorância sem se darem conta de que a verdade, todos sabemos, é um ato de libertação. A mãe brilhantemente interpretada por Denise Del Vecchio, enfim e no encerrar do espetáculo, está liberta e como tal pode finalmente sepultar o filho, aos demais fica o desejo de se libertarem da violência e da paixão, sentimentos tão indissociáveis como ar que respiramos, ainda que agora denso pela fumaça das queimadas dos ruralistas, alerta do atraso que permeia a imensa fazenda onde Tom se encontra e se desencontra. E onde nos encontramos na esfumaçada noite de sexta-feira.

editoraolympia

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