O palco do Teatro Municipal de Uberlândia se transforma neste fim de semana numa arena. Nela dois homens se encaram: um marquês e um ator, duas potências de interpretação protagonizadas por Osmar Prado e Maurício Machado em “O veneno do teatro” dentro do bem sucedido projeto Uberlândia na Rota das Culturas. O primeiro usa a mentira como luva; o segundo, a vaidade como couraça. Entre eles, um violoncelo corta o ar—notas afiadas, tensão que sangra.
O marquês diz: “A verdade só existe quando dói.” Já o ator neste momento fica perplexo, ferido em sua vaidade. Ele veio em busca de um papel, mas o papel exige sua morte.
Assim começa O Veneno do Teatro, de Rodolf Sirera, peça escrita sob os escombros do franquismo e que, hoje, ressoa como um eco sombrio de nossos tempos.
— “Como representar Sócrates sem beber a cicuta?”, pergunta o marquês. — “Como fingir a morte sem morrer?”, rebate o ator.
A peça escava a ferida aberta entre arte e realidade. O marquês, interpretado por Osmar Prado com a frieza de um carrasco elegante, acredita que só a experiência extrema legitima a representação. Gabriel Beaumont (Maurício Machado), o ator, oscila entre a arrogância e o desespero—um homem que, no fim, descobre que sua arte pode matá-lo.
É uma metáfora cruel do poder: quem controla a narrativa controla a vida.
Sirera escreveu sob o fantasma de Franco, mas a montagem de Eduardo Figueiredo transpira o cheiro do Brasil bolsonarista. O marquês, com seu autoritarismo estético, lembra os que querem calar artistas, reescrever a história, impor uma única “verdade” carregada de mentiras, as Fake News (notícias falsas) que se tornaram a marca registrada do bolsonarismo para sepultar a verdade.
O cenário de Kleber Montanheiro poderia ser um salão da elite paulistana, a mais retrógada do país, ou um gabinete de político que, com poder, comete os maiores absurdos, degradando a vida humana e o meio ambiente ao redor.
O violoncelo de Matias Roque Fideles não acompanha a cena—ele a estrangula. Ex-aluno de Kayami Satomi na Universidade Federal de Uberlândia, Matias tira das cordas o suspense que acompanha as cenas e marca o ritmo dos embates entre o ator e o marquês.
Beaumont é um espelho quebrado: reflete a vaidade do artista, sua fragilidade, sua cumplicidade com o opressor. Machado entrega um desempenho visceral, transitando da soberba ao pânico. Prado, por sua vez, é um predador de palavras—cada pausa, um convite ao abismo.
Gigante, Osmar Prado mostra a potência de sua interpretação e o vigor, aos 77 anos, do garoto que desde os cinco queria ser artista e que conquistou seu espaço quando ainda tinha dez anos porque uma tia sua, operária, a Trindade, acreditou nos seus sonhos e o levou para as agências de escalação de elenco da São Paulo do passado.
A grande pergunta, porém, deste espetáculo não é sobre atuação. É sobre cumplicidade: até onde um artista aceita ser manipulado para brilhar?
A plateia sai intoxicada. Não pelo espetáculo, mas pela pergunta que ele deixa:
Se o teatro é um veneno, quem o bebe—o ator, o poder, ou nós, que aplaudimos?
Sirera não responde. Figueiredo também não. O violoncelo se cala.
E o silêncio, depois do espetáculo, é a resposta mais perigosa.