Sebastião Bernardes de Souza Prata, pequeno de corpo com apenas 1,5 metro e de frágil musculatura, mas gigante no talento é o maior nome entre todos os que nasceram em Uberlândia e dificilmente será superado por aqueles que hoje enfeitam ou enfeitarão nomes de ruas, praças e avenidas da cidade que há décadas convive com a dificuldade em homenagear com um simples teatro, o antigo cinema Vera Cruz, o genial Grande Otelo.
É este o apelido que o menino Tião nascido em 18 de outubro de 1915 ganhou de seus pares em referência ao mouro preto de Veneza da obra do bretão William Shakespeare que o italiano Giuseppe Verdi transformou em sua penúltima e mais contundente ópera e que também dá título ao filme documentário “Othelo, o Grande” de Lucas Rossi, produzido por Ailton Franco. Obra que foi apresentada ao público da cidade onde Tião nasceu na noite da sexta-feira, 30 de maio de 2025, na Sociedade Médica de Uberlândia dentro da programação do bem sucedido projeto Uberlândia na Rota das Culturas e com a presença de seu filho José Prata, o Pratinha.
A genialidade do filme documentário e sua agilidade, como a que marcou a arte de Grande Otelo está no fato de o diretor do documentário deixar que o próprio artista narre a sua trajetória, por meio de depoimentos e entrevistas, e as imagens apresentem esse gigante da cultura que é a marca do povo brasileiro, o que de melhor o Brasil tem.
Otelo sabia que o riso era uma arma afiada. Nos palcos, vestia-se de mulher, torcia a voz, exagerava os gestos, e a plateia branca ria até cair como na impagável cena de “Romeu e Julieta” do filme “Carnaval no Fogo” de 1949 e que marcaria a estreia nas telas de Jece Valadão, José Lewgoy e Wilson Grey. Ao lado de Oscarito, o Romeu, a Julieta de Grande Otelo é até hoje uma referência de como o humor é uma arte, a mais complexa e difícil das artes: a de fazer rir mesmo que na ocasião uma tragédia se abatesse sobre o artista. Lucia, sua primeira mulher, matou o filho dos dois e depois se matou. Chuvisco, o menino que carregava o nome de uma brincadeira leve, virou estatística de uma dor que não cabia em letreiros de cinema.
Otelo seguiu em frente. O show não podia parar. O comediante não tem direito ao luto. O Brasil exigia que ele continuasse a fazer rir, mesmo quando o riso havia virado cinza em sua garganta.
Neste filme de 1949, todos riram do preto baixinho, do corpo que não se encaixava no molde do herói, da caricatura que lhes era servida. Mas Otelo ria por último. Ele sabia que, por trás da máscara do palhaço, havia um homem que conhecia o jogo melhor do que os donos do circo.
No documentário de Lucas Rossi, as imagens falam por ele: Otelo entrava pelos fundos dos cassinos onde se apresentava. No camarim, era estrela. Na porta da frente, era apenas mais um preto e quando perguntado num antigo programa Roda Viva da TV Cultura se havia racismo no Brasil deu genial resposta que caso não houvesse a pergunta do jornalista não teria o menor sentido.
Na Atlântida, Grande Otelo era a dupla perfeita com Oscarito. Branco e preto, alto e baixo, a comédia dos opostos. Mas por que era sempre “Oscarito e Grande Otelo”, nunca o contrário? O Brasil respondia sem precisar dizer: a ordem é essa, segue sendo essa num país habitado por néscia vereadora uberlandense, representante de uma sórdida elite inculta e horrenda como só a extrema-direita sabe gerar para golpear o país e os brasileiros, o que há de brasilidade em nós.
Depois veio o Cinema Novo, e Otelo foi Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Ironia fina: o maior ator do país interpretando um personagem que era a síntese do Brasil — misturado, contraditório, tragicômico. E se Grande Otelo se ressentia do fim das famosas chanchadas nas telas que o Cinema Novo veio a ocupar foi em obras como a de Nelson Pereira dos Santos, Rio, Zona Norte, que o ator uberlandense pode mostrar toda a sua genialidade da comédia ao drama. Rossi usa a cena brilhante do também compositor Grande Otelo, autor do sensancional samba “Praça Onze”, cantalorando num dos vagões da Central do Brasil. Imagem que ilustra este texto.
O premiado norte-americano Orson Welles, diretor do clássico “Cidadão Kane”, quis filmá-lo. O projeto morreu. O governo dos Estados Unidos não via interesse em um filme sobre favelas e sambistas. Otelo seguiu sendo a lenda que Hollywood ignorou. E lendário contracenou com o prestigiado Klaus Kinski no famoso filme “Fitzcarraldo” do alemão Werner Herzog, uma obra-prima do cinema mudial.
Na Escolinha do Professor Raimundo, era Eustáquio, o malandro que fazia graça até da própria desgraça. O Brasil mudava, mas Otelo continuava sendo o mesmo: genial, subestimado, necessário.
Quando morreu, em 1993, o país perdeu um pedaço de sua própria memória. O documentário de Rossi devolve essa memória em pedaços — imagens de arquivo, vozes roubadas pelo tempo, risos que ecoam no vazio.
Otelo não precisava de homenagens engessadas. Precisava que alguém contasse sua história como ela foi: uma comédia triste, um drama engraçado, um espelho partido do Brasil como o que o documentário o apresenta.