FRANCISCO: O FIM DO PONTIFICADO HUMANO

FRANCISCO: O FIM DO PONTIFICADO HUMANO

Carlos Franco

O mundo acordou hoje sob um céu de chumbo. Nos telões das praças vazias, nas telas dos celulares, nas rádios dos táxis, uma única notícia ecoava como um salmo rouco: Habemus finem. Francisco, o argentino Jorge Mario Bergoglio que carregou o nome do santo pobre, o papa que ousou lavar pés de refugiados e prisioneiros, havia fechado os olhos para sempre. Morria não um príncipe da Igreja, mas um pastor que preferiu as periferias existenciais aos palácios dourados do Vaticano.

Diferente de seus predecessores – João Paulo II, cuja aura quase monárquica ofuscou as feridas da instituição, e Bento XVI, intelectual distante que fugiu do peso da tiara –, Francisco entendeu que a fé, no século XXI, só sobreviveria se feita de carne e terra. Abraçou homossexuais quando a doutrina os rejeitava, beijou os pés de líderes sul-sudaneses enquanto cardeais torciam o nariz, chamou traficantes e prostitutas de “irmãos perdidos” com a mesma naturalidade com que condenou a ganância dos bancos. Sua humildade não era estratégia: era revolução. Abraçou o legado de Cristo, da tolerância e do amor ao próximo e, primeiro papa sul-americano da Igreja Católica, condenou o fascismo que nos ronda.

Na noite anterior à sua morte, já com a voz sumida, pedira que lessem para ele o capítulo 15 de Lucas – a parábola do filho pródigo. Um gesto simbólico: Francisco passara o pontificado insistindo que a Igreja deveria ser não a casa dos perfeitos, mas o hospital dos caídos. Enquanto Bento XVI condenava a “ditadura do relativismo” e João Paulo II esquadrinhava teólogos na Congregação para a Doutrina da Fé, ele desmontava tribunais invisíveis. “Quem sou eu para julgar?”, perguntou certa vez, numa frase que resumia seu pontificado.

Os tradicionalistas nunca o perdoaram por isso. Chamaram-no de herege, populista, até “marxista”. Mas os esquecidos – os divorciados, os aidéticos, as vítimas de padres pedófilos a quem ele foi o primeiro a escutar – choram hoje como se tivessem perdido um pai, um espelho do Cristo que Francisco fez ressuscitar, como um presente de Páscoa, no coração dos homens. Nas favelas do Rio, velas acesas em latas de leite em pó; nas prisões espanholas, presos rezando em coro; em Buenos Aires, cartazes com a simples inscrição: “Gracias, viejo”.

A morte de um papa sempre é um espetáculo. Mas enquanto João Paulo II teve reis e presidentes ajoelhados em seu velório, Francisco recebe flores de anônimos na Praça de São Pedro, sede do Vaticano. Nenhum líder europeu ousou discursar sobre “santidade” – ele os havia humilhado ao chamar a Europa de “avó estéril” por fechar portas a imigrantes. Os mesmos cardeais que conspiravam contra ele agora vestem púrpura em homenagem, mas as ruas sabem: esta morte é o fim de uma tentativa rara de fazer da Igreja um lugar de abraço, não de dogma como os que inspiram igrejas evangélicas que trocaram o legado de amor do Cristo pelo ódio.

Quando o caixão de pinho simples – como ele pediu – descer na cripta da basílica de Santa Maria Maggiore (Santa Maria Maior, em português), em Roma, uma mulher cigana, como aquela que leu a mão de Paulo Freire na bela canção do paraibano Chico César,  jogará ficticiamente sobre a sua última morada um punhado de terra das favelas, retrato fiel da moradia dos excluídos pela ganância e a bandidagem que os bancos refletem. Ninguém a impedirá de fazê-lo. É o gesto que Francisco teria aprovado: desobediente, humano, cheirando a pó e a esperança.

Restam, porém, perguntas. Terá sido Francisco um profeta ou um interlúdio? Suas reformas morrerão com ele, como aconteceu com o Concílio Vaticano II após Paulo VI? Os arquivos revelarão, nos próximos anos, quantas vezes ele chorou ao ler cartas de mulheres vítimas de violência doméstica, a quem a Igreja negava divórcio. Ou quantas noites passou acordado, esquadrinhando contas do Vaticano, tentando limpar o podre que sabia intocável.

Mas talvez sua maior herança seja ter mostrado que a fé, quando deixa de ser arma, pode ser colo. Numa época de fanatismos, ele ousou ser frágil: usou sapatos velhos, confessou dúvidas, admitiu erros. E ao fazê-lo, devolveu, ainda que por pouco tempo, um rosto humano a uma instituição que há séculos parecia feita de mármore e medo.

Na última página de seu diário, encontrado sob o colchão de hospital, uma linha a lápis: “Senhor, fiz o que pude. Perdoai o que não consegui”. O mundo – crente ou não – diz hoje amém ao homem que entra para a história como titular do pontificado mais humano que o mundo conheceu.

editoraolympia

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